- Não. Nenhum pingo de insanidade. Isso o choca?
- Um pouco talvez, mas depois de tanto tempo poucas ou nenhuma coisa seria capaz de me espantar.
- Por curiosidade - Começou o rapaz sentado no canto da cama.
- Tempo demais - Interveio o homem em pé junto a porta do banheiro - Sou de um tempo sem relógios ou calendários, e não por isso, mas também por, sei que estou velho.
Era um sujeito elegante, vestia um terno negro, sapatos novos e lustrosos. Seus olhos( parte mais destacada de seu rosto meio insosso) eram cinzas e antigos. A idéia de adjetivar aquele par de olhos como antigos fez com que Pablo, o sujeito no canto da cama, sorrisse.
- Poucos sorriem ao me ver- Constatou o homem elegante com rosto sem rosto.
- Você conversa com todos?- Replicou Pablo em tom sagaz.
- Não- Suspirou concordando o homem elegante- Não sou um sujeito de muitas palavras.
A moça deitada se moveu como acordando, Pablo virou-se, fitou-a apreensivo e percebeu que ainda dormia.
- Não se preocupe - Disse o homem de rosto sem rosto- ela não pode nos ouvir.
II
tic-tac, tic-tac, tic-tac. O tempo acabou. Penelope corria pelos corredores do sonho. Era tarde, tarde demais talvez, podia ouvir do lado de fora do sono o ventilador de teto rangendo irritante sua canção de não dormir, distinguia a voz de Pablo e também um silêncio frio e cortante em forma de som, que ela sabia ser a voz do interlocutor do homem que escolhera para dividir seus sonhos. O ruído da chuva cessara, e agora, um vento mormaçento de mau agouro preenchia seus pulmões vivos de sonhar, fazendo-a tossir, tic-tac, tic-tac, tic-tac, cantava o relógio parado da cozinha, e um canto antigo na voz de Renato Russo dizia que o tempo acabou.
III
Quando a ouviu tossir, Pablo estremeceu, olhou-a de soslaio, interrompendo outra frase daquela já longa conversa que travava com o homem elegante que trajava um terno negro.
- Já lhe disse, ela não pode nos ouvir- Insistiu calmamente o homem de terno negro.
Olhando-a com todo o sonho que ela cultivara nele, com toda a vida que ainda tinha transbordando da cortina dos olhos, Pablo respondeu, em um tom dócil e amoroso:
- Se há alguém capaz de nos ouvir, esse alguém é ela.
A docilidade, o amor que fugia de Pablo cada vez que ele se referia a moça no sono, fez com que o homem elegante quisesse prolongar a já longa conversa que tinha com o jovem homem sentado sobre os lençóis molhados de suor.
- Como se conheceram?- Questionou o homem - Isto é- Prosseguiu- Caso não ofenda perguntar.
- De forma nenhuma- Continuou Pablo, levantando- se e dirigindo-se a geladeira na cozinha- Quer algo para beber?
- Vinho, por favor- Disse o homem elegante.
- Casillero?
- Sou fã dos chilenos.
- Por falar em chilenos - Questionou Pablo com real interesse- Como anda Allende?
- Foi-se em silêncio, depois disso nunca mais o vi, mas Jara, ah, esse canta em todos os bares.
- Há bares?- Perguntou Pablo, já com um largo sorriso estampado no rosto.
- Sempre há um bar, mas não mude de assunto, como se conheceram?
Chocaram-se as taças em um brinde surreal, e olharam-se em silêncio por um tempo, como rindo por dentro por saber( ambos entenderam isso, sem nada dizer) que aquele momento era incomum e que deveriam desfrutá-lo.
- Nos conhecemos- Principiou Pablo - Como costuma acontecer com os grandes amores, por casualidade. Ela ainda não era minha, mesmo já sendo de há muito tempo, e eu ainda não era dela, mesmo já sendo de uma eternidade toda.
- Por casualidade?
- Sim, ela é daquelas que vive as canções e as pinta por aí, pelas paredes deste mundo cinza, cor de fim, e eu sou um desafinado cantor de madrugadas. Sendo, quem sou, nem menos, nem mais, nem melhor, nem pior, complementei as canções que ela pintara e ela se encantou pelos meus versos, e eu amei cada acorde e cada verso dela.
- Pouca objetiva sua descrição- Concluiu o homem sem rosto, após alguns instantes em silêncio.
- Nunca fomos objetividade, sempre fomos sonho, e somente por isso ainda a sorrio com a mesma internisade a cada por do sol terrestre, a cada vez que a lua pinta um arco e se despede para que o amanhecer sobrevenha.
O sujeito de terno negro fez uma menção como se entendesse, muito embora ambos soubessem que ele jamais entenderia, o vinho começava a deixar seu tom roxo nos dentes dos dois que ali presentes falavam baixo para não desperatar a donzela adormecida.
IV
Ela correra, correra e caíra. Tudo era escuridão, não era um pesadelo, não se parecia a um sonho tampouco, havia um sepulcral silêncio, um acre odor a cheiro nenhum, algo similar ao nada dos que flutuam nas estrelas e se despedem de seus sentidos terrenos por não se fazer necessário usá-los. Ela que tinha brilho próprio além de sons e cheiros, tentou cantar, a princípio sua voz teimou em não sair, se esforçou mais e mais, e dentro do seu intento um som ainda opaco fez-se ouvir e sob seus pés as ondas de som ecoando acenderam uma estrela que estava apagada. Reuniu, todas as forças que ainda lhe restavam e uma frase solitária ecoou pelos rincões mais longinquos do universo:
- Fiz do som da tua risada, um hino.
Abaixo dela uma outra estrela se acendeu e o sorriso dela se iluminou( iluminando portanto, qualquer escuridão que ainda lutasse contra a luz), no fim descobria que era sim um sonho, um sonho bom, se preferirem, e que as duas estrelas recem acesas, eram um par.
V
- Fiz do som da tua risada, um hino- Complementou, Pablo, enquanto a via mormurar sonâmbula as palavras que Oswaldo Montenegro, brilhantemente bordara sobre o papel.
- Viu - Prosseguiu transbordante de orgulho e admiração - Até os sonhos dela são repletos de poesia.
O vinho quase chegava ao fim e o relógio da parede da cozinha jazia adormecido as 2:43, muito embora seu incessante, irritante, e mortal tic-tac seguisse ecoando.
- Você é um bom sujeito, é uma pena- Disse o elegante sujeito em traje negro de gala.
- Na verdade sou um chato, você que me conhece pouco.
Os dois riram e mesmo que não tenham percebido, Penelope sorriu em silêncio.
VI
Viajando na calda daquelas duas estrelas que inventara, passava por cada instante de sua vida, por cada primeiro sorriso, até o primeiro sorriso que fora deles, cada primeiro beijo, até o primeiro beijo que fora deles, cada primeiro toque até o primeiro toque que fora deles. Passou pelos filmes que viram juntos, e pelo que rirar e choraram com " A vida é bela", pelas canções que falava da alma híbrida que sabiam possuir e que cantava, por ser alma, ainda mais do que eles, seresteiros dos sonhos, antes que a estrada que a levara até ele chegasse ao fim, ela murmurou alguma coisa, depois sorriu e ainda adormecida dentro do sono, ela novamente adormeceu.
VII
- Como prefere que seja?
- Da forma menos dolorosa- Respondeu Pablo, mais por força do hábito do que por medo da dor.
- Não vai doer nada.
- Então, prefiro o mistério.
- Algum último desejo? E não vale pedir mais tempo - Disse o sujeito do rosto, sem rosto em tom jocoso.
- Só alguns instantes para me despedir.
- Claro, te esperarei na porta- Completou o homem em trajes negros, enquanto girava sobre os tornozelos e se retirava do quarto.
- Adeus, meu amor- Murmurou ao ouvido de Penelope, sua companheira de sonho, pele e vida. Beijou-lhe a testa suavemente e naquele instante( que acabou sendo eterno) os dois sussurraram juntos uma frase pela ultima vez:
- Buongiorno, principessa.
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