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terça-feira, 5 de julho de 2011

HERANÇA DO PAI

Os olhos do animal estavam fechados, parecia morto já há algum tempo. Não havia em qualquer ponto de sua pele ainda brilhosa marca de tiro, ou ainda corte proporcionado por objetos afiados. Nada que explicasse o por que de tão repentino fim. Arthur lembrou-se então que a morte não manda avisos e que a fronteira que nos separa do nosso destino é por todos cruzada, fora a vez do Luzido, cavalo que montava a tanto tempo.
Sentou-se ao lado do bicho e acariciou o seu pelo enquanto com o olhar buscava ver sua alma partindo no horizonte do pampa. Tentou até forçar o choro, forjar lágrimas que não tinha, pois quando está só, e perde um amigo até mesmo o gaúcho pode chorar. Contudo, não conseguiu como era de se esperar.
O Cavalo lembrava-lhe o pai, e desde muito tempo não chorava pelo seu velho. Não sabia mais como, desde o dia que o pai partira emboscado por um tal Gualberto, só chorara naquele dia, mais pela tristeza da mãe e pela dor que os outros precisavam ver nele, do que por ganas de fazê-lo. Tinha desde aquele dia vingança na mente, lágrimas não tinham nada a ver com isso.
Era ainda um piá, tinha apenas oito anos quando o pai se foi. Do tempo que o pai era vivo não trazia demonstração nenhuma de afeto, não lembrava de abraços, de um beijo sequer, não lembrava ter tido um pai. Mas lembrava do sangue que compartilhavam correndo-lhe as veias, e o sangue era mais forte, aprendera isso, com o avô, o sangue sempre tinha de ser mais forte.
A noite quase despejava seu véu imenso recortado de estrelas sobre o céu do pampa e ele ainda estava longe demais das casas. Deixou o crioulo em seu tranqüilo repouso eterno e saiu atrás de lenha. Quando voltou menos de uma hora depois a noite já era realidade o que dificultou-lhe a invenção do fogo, abraçado pelo calor da fogueira preparava-se para dormir, tratando de enganar a fome.
Lembrou-se, um pouco antes de ser vencido pelo sono, de um pequeno detalhe que o deixou um pouco inquieto. Era uma impressão de que o cavalo Luzido havia mudado de lugar. A noite nos prega peças, sussurrou-lhe a voz firme do avô aos ouvidos, e foi a voz do avô, que fez novamente com que ele lembrasse do pai.
Lembrou do dia em que o pai partira pra não mais voltar. Montado no zaino de nome luzido, que agora também encerrava seu ciclo, despediu-se da mãe com um beijo carinhoso e dele com o olhar usual e a frase de sempre.
- Cuida da casa e da tua mãe, quando eu saio o homem da casa é tu.
- Pode deixar, pai – Respondia o pequeno Arthur, mesmo sabendo que se preciso fosse jamais poderia cuidar da mãe e muito menos da casa. Não se importava com isso, era o mais próximo de companheirismo que tinha com o pai. Adorava ouvir aquelas palavras.
Nunca mais o vira, o zaino voltara sozinho, com um andar cansado e cortes profundos. Arthur fora o primeiro a avistá-lo, e desde aquele momento, compreendera que era de fato o homem da casa. Saíra com os peões da fazenda em que vivera toda a vida a procura do pai, mesmo que sua alma lhe dissesse aos berros que seu velho tinha partido.
Depois de exaustivas horas de busca, um dos peões encontrara o corpo destruído de Alfredo, o pai de Arthur. Repleto de escoriações, seus ossos estavam quase todos quebrados, alguém batera demais e com tamanha força no pobre homem.
Ele que nunca fora de deixar-se agredir até havia conseguido machucar o agressor, em sua mão direita o facão de costume ainda estava aferrado com força aos seus dedos, havia muito sangue nele. O peão que encontrara Alfredo, não deixou que Arthur visse o pai.
Arthur viu-o conversando com outros peões, dizendo que jamais vira tamanha agressividade, que as vezes até parecia que ele havia sido pisoteado por uma tropilha inteira. Quem fizera aquilo, tinha de ser respeitado, tinha muita raiva sobre o lombo.
O zaino Luzido acabou ficando para Arthur, que com o tempo iniciou a executar as mesmas funções que o pai executava, dando um jeito de colocar comida sobre a mesa da casa, que ele havia prometido cuidar. Soube por essa época, em uma de suas primeiras tosquias que um tipo chamado Gualberto, andava vangloriando-se na cidade de ter matado Alfredo, que todos sabiam, era um Ás em uma peleia de facão.
Arthur racionalizou o que sabia e foi transformando a dor da mãe, as cicatrizes no lombo do cavalo e as lágrimas que derramara em ódio. Poderoso sentimento que quando alimentado pode mover um homem. Arthur, então, o alimentou com afinco, tratou-o carinhosamente até que ele fosse tão poderoso que controlasse o seu criador.
Peleou muito, ganhou a maioria das brigas, pois ao contrário dos demais tinha um objetivo, tornou-se respeitado pelos demais peões antes mesmo de chegar a vida adulta, não que isso importasse, o que importava era ser forte o bastante para vencer Gualberto Guerra, para matar Gualberto Guerra.
No inicio daquele dia em que seu cavalo, ultima lembrança do seu pai, morreu, Arthur foi até a cidade a procura do homem que pretendia matar. Sabia onde ficava o bolicho que o assassino do seu pai costumava freqüentar, bolicho onde haviam se conhecido e se jurado. Sentou-se e esperou, o tempo era seu aliado, sabia lidar com ele, abandonara qualquer espécie de ansiedade, aprendera a controlar os seus nervos.
Gualberto, depois de algumas horas de espera, chegou. Sentou-se ao balcão, comeu, bebeu, gritou, disse idiotices. Algumas horas passaram-se e Arthur permanecia quieto, começava a pensar em ir embora, não sabia se podia matar, se sua natureza permitiria que matasse tão facilmente e sabia também que se peleasse com aquele homem seria preciso matá-lo.
Foi aí, que Gualberto sem saber cometeu um erro, começou a contar histórias de seus tempos de jovem. Histórias de um jovem que não tinha medo da morte e nem medo de matar, Arthur ouviu a primeira, ouviu a segunda, já esperando para ouvir a história que precisava. Foi a terceira, na verdade foi essa a que Gualberto contou com mais entusiasmo: “ Já naquela época todo mundo sabia quem era Gualberto Guerra. Muitos já tinham sentido o gosto da minha adaga. Mesmo assim, o povo idiota daqui dizia que tinha um tal de Alberto, ou Alfredo não sei de quê, que era com a adaga mais destro que eu. Discuti com ele nesse mesmo bar, e naquela noite ele teve a audácia de cortar o meu rosto.
Segui aquele hijo de perra pela noite e alcancei um pouco antes do arroio do meio, desafiei e peleamos, bati demais naquele infeliz, não sobrou nem um osso inteiro. No fim a moçoila implorou pela própria vida.
Não tive piedade, cortei ele todo, a língua, os olhos, antes de cortar a garganta dele.”
Uma salva de palmas fez-se ouvir, acompanhado por assobios nos mais diversos tons. Arthur levantou-se calmamente, após o causo todo haver sido contado. Não esperava estar tranqüilo, contudo, estava.
Precipitou-se velozmente contra as costas de Gualberto que por estar bêbado caiu com uma facilidade incomum. Todas as vozes silenciaram, os silvos e as palmas emudeceram, todos estavam chocados. Não por uma peleia ter sido deflagrada e sim, por alguém atrever-se a enfrentar Gualberto Guerra.

- Levanta, Filho da puta. Peleia comigo, se és macho? – Os olhos de Arthur chamuscavam de raiva. Sua mão, todavia estava tranqüila, seus movimentos rápidos na retirada da adaga, fizeram com que Gualberto recuasse.
Percebendo os olhares incrédulos dos outros, Gualberto assumiu seu personagem de matador e precipitou-se contra Arthur pensando que em sua juventude ele cometeria algum erro.
Rapidamente, Arthur esquivou-se e com um forte golpe nas costelas derrubou novamente o algoz de seu pai.
Com ainda mais fúria, Arthur bradou o mais forte que pôde.
- Levanta – o eco do seu grito enfurecido fez-se ouvir por várias quadras.
- Quem és tu? – Perguntou Gualberto Guerra
- Sou Arthur Riveiro. Sou o homem que vai te matar.
- Por quê?- Questionou Gualberto, verdadeiramente temeroso.
- Por mim, pela mãe e pelo meu pai.
Gualberto continuava sem entender quem era aquele garoto e o porquê de estar sendo atacado. Já compreendera a essa altura, no entanto, que sua vida estava em jogo. Tinha contra si o fato de estar no chão e de o garoto ser mais forte do que ele era. Todavia tinha a vantagem de saber matar. Sabia disso, Arthur também.
Gualberto recuou um pouco até encontrar o apoio da parede e levantou-se em um pulo rápido, o que deixou Arthur um tanto impressionado. A adaga retirou da calça com ainda mais destreza do que Arthur fizera. Lançou-se sobre ele, no único momento em que Arthur chegava a pensar que podia ser derrotado. O lance da adaga roçou-lhe a garganta, alguns centímetros mais e Arthur estaria morto, todavia, deixou Gualberto vulnerável.
Em um ato reflexo a adaga atrelada a mão direita de Arthur afundou-se no peito de Gualberto Guerra. Seus olhos, então encheram-se de morte. E ele ainda vivo, olhou no fundo dos olhos de Arthur.
- Riveiro? Alberto Riveiro?- Murmurou Gualberto Guerra
- Alfredo-Disse Arthur devolvendo o murmúrio.
Um sorriso triste se fez no rosto do homem que expirava com a adaga de Arthur no peito. Suas ultimas palavras não foram mais do que um murmúrio e acompanharam Arthur até o fim de sua breve estrada. Ele disse, com a impiedosa falta de misericórdia dos que morrem:
- Não fui eu.
Não fui eu. Aquelas palavras viajavam pelo imaginário do jovem vingador enquanto ele e Luzido galopavam velozmente na direção de casa em meio ao pampa que era a sua vida. Depois de alguns momentos com aquelas palavras martelando sua cabeça, resolveu pensar em outra coisa, eram palavras de um mentiroso, pior de um assassino mentiroso.
Estava mais preocupado com outras coisas, houvera várias testemunhas, pessoas que poderiam reconhecê-lo com facilidade, Arthur sabia que em breve seria encontrado e tratava de acostumar-se a idéia. Chegara ao lugar de sua história que sempre esperara. E um homem que é escravo de si mesmo, é um homem livre.
Pensava no homem que acabara de matar e no pai que há tanto tempo partira, quando seus olhos enclausurados finalmente encontraram o sono. Luzido estava ali morto, descansando de sua ultima batalha a beira da fogueira que afastava os fantasmas, Arthur sonhou com a morte, no tempo em que esteve adormecido e encontrou-se com ela quando despertou.
Um relincho acordou-o. Ruído familiar, que ele reconhecia como o de um amigo de longa data. O ruído vinha de algum lugar próximo de onde ele estava, um lugar, todavia, que não conseguia ser iluminado pela fogueira, afoito para ajudar o cavalo que antes de tudo fora sempre um amigo, atirou-se contra a escuridão da noite. Tateando através de suas largas passadas a proveniência do som. O relincho havia se tornado um choro, o que fez com que ele se apressasse ainda mais, chegando ao ponto de correr. Quando quase chegava ao seu objetivo foi vencido por um pequeno buraco que fez com que seu tornozelo torce-se e com que ele caísse.
Pode sentir o inchaço, mesmo antes de tocar no seu pé. Sabia não poder mover-se, encontrava-se distante demais do fogo para poder rastejar de volta. Sua única esperança é que aquele rangido fosse mesmo do luzido e que o animal se aproximasse dele, permitindo-lhe a subida ao seu lombo.
O choro do cavalo parou, e seus passos começaram a ser ouvidos. A certa distancia, dois pontos vermelhos fizeram-se ver. Inicialmente Arthur temeu-os, em seguida aliviou-se de vê-los. Convicto de que, sim, aquele era seu cavalo.
Quando luzido chegou onde o jovem Arthur estava seus olhos vermelhos ainda se destacavam na escuridão. Seu relincho recentemente lamurioso parecia agora algo enraivecido e seus movimentos começaram a ser agressivos .
Apoiado apenas nas patas traseiras o cavalo começou a tentar acertá-lo com as patas da frente. Imaginando primeiro que o cavalo não o estivesse reconhecendo, Arthur muito gritou quem era e chamou pelo nome do animal. Fez isso até um golpe forte do animal destroçar-lhe os dentes e impedir-lhe de se defender.
Aferrou-se a adaga que matara Gualberto e tratou de acertar o animal quase instintivamente, cortando-lhe as patas, foi aí, enquanto agia em um estado quase de subconsciência que entendeu algo, tão magnificentemente cruel que o derrotou integralmente naquela batalha, ele viu algo em sua mente, algo que agora fazia sentido.
Era a imagem do cavalo muito machucado voltando para casa no dia em que o pai falecera. Era o murmúrio de Gualberto Guerra antes de morrer, eram as palavras do peão que encontrara seu pai : “ Parece que foi pisoteado por uma tropilha”. Pisoteado por uma tropilha, era nisso que pensava enquanto encarava o seu destino. Nisso e também no fato de que vivera e morrera igual ao pai.

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