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segunda-feira, 31 de maio de 2010

O CASO DA MORTE TRANQUILA

1

Quando Nestor fechou os olhos, ainda não havia lágrimas de chuva na janela. A lua cheia ainda não havia sido totalmente eclipsada pelas nuvens, e os raios crepusculares eram ainda apenas lembranças do dia que terminara. Sua cabeça tinha dezenas de idéias, totalmente distintas entre si, todas relacionadas á dezena de problemas que ele não tinha idéia de como resolver.
Sua companheira para aquela noite, repousava saciada ao seu lado. Seus cabelos negros, longos e lisos escondiam-lhe os olhos e caiam recatadamente sobre os seios, sua respiração suave e seus traços corporais joviais, desafortunadamente, não eram o suficiente para acalmar Nestor.
Sua cabeça doía em demasia, e as responsabilidades que ele tinha, somadas as responsabilidades que ele acreditava ter, eram algo pesado demais sobre seus ombros. Seus tímpanos titilavam com a voz de sua ex-mulher, que a cada mês tentava arrancar-lhe mais dinheiro, gritando-lhe aos ouvidos em meio dos berros de choro dos dois filhos que ele tivera de deixar para trás.
Levantou-se silenciosamente, foi ao banheiro, e após urinar e lavar as mãos com desinteresse, abriu o armário e de lá retirou um pequeno vidro de remédio. Deixou que alguns pílulas caíssem sobre a palma de sua mão, e sem contar quantas eram, jogou-as a boca. Recostando o peito sobre a pia, abriu a torneira e com a ajuda da água que ela emprestava, empurrou as pílulas que colocara na boca, goela abaixo.
Caminhou calmamente de volta para a cama, ainda tratando de não fazer barulho. Deitou- se com a barriga voltada pra cima, e em quanto esperava o remédio fazer efeito, analisou as particularidades do teto, depois de algum tempo, quando tinha quase certeza de que não teria êxito em seu intento de dormir, seus olhos se fecharam abruptamente, e ele adormeceu.

2

Seus olhos se abriram poucos minutos antes das quatro da manhã. O teto foi novamente seu alvo, quando isso aconteceu. Olhou para o relógio e ao contrário de outros tantos dias em que despertara e percebera que a noite ainda estava em seu esplendor, não ficara irritado. Com algo semelhante a otimismo, pensou com seus botões: “ Até que dormi muito”.
Quando olhou para o outro lado, percebeu duas coisas. Uma delas corriqueira, até banal em vista da outra, chovia com muita força do lado de fora. A outra, poderia também ser desimportante( Contudo, não foi dessa maneira que revelou-se), a sua acompanhante simplesmente não estava mais ocupando seu posto na cama.
Buscou-a pela casa, evitando chamá-la, afinal sequer recordava seu nome. Procurou-a no banheiro, em seguida na cozinha, pela sala, e em todo e qualquer canto da casa onde um ser humano pudesse estar, a moça simplesmente desaparecera.
Foi até a porta da rua, a ultima fronteira entre sua casa e o lado de fora, a chave ainda estava na fechadura pelo lado de dentro, e estava trancada. O que levou-o a obvia constatação que ao menos pela porta a moça não poderia ter saído.
Novamente no quarto, percebeu que a juvenil saia que a moça usava antes de adentrar aquele quarto, ainda jazia aos pés da cama, o que tornava a sua factual ausência algo ainda mais inquietante.
Ao lado da saia, encontrou sua calça e no bolso da mesma o seu celular. Quando pensou em ligar atrás da moça apercebeu-se que sequer recordava como ela se chamava, o que indicava, que muito possivelmente não tivesse o telefone dela.
Quando ia devolvê-lo ao bolso da calça, que a essa altura já vestia, o celular tocou. Um número desconhecido piscava e gemia em suas mãos. Ele olhava para o aparelho, com um misto de apreensão sem sentido e de ânsia desenfreada, acrescente-se, igualmente sem sentido.
Quando finalmente apertou o pequenino botão verde, e levou à orelha esquerda o aparelho telefônico, um ruído fortíssimo fez-se ouvir. Algo do outro lado da linha, literalmente, explodira. Uma voz indecifrável, dizia algo, igualmente, indefinível. A única coisa que podia ser descrita na voz entrecortada e distante, era que quem quer que fosse, estava desesperado.
Quando pensava em desligar o aparelho e tratar de acordar daquela espécie de mini pesadelo em que estava inserido, uma voz familiar fez-se ouvir. Era Jaqueline, sua filha de oito anos, e ela dizia:
- Fogo.....papai.....Socorro....Fog...ma....jud....- Depois disso, houve um corte abrupto e a ligação caiu.
Desesperado, Nestor, agarrou as chaves do carro, adormecidas sobre a mesa da sala, e rumou rapidamente para a garagem. Ao entrar no carro, ligou o motor e arrancou o mais rápido que pôde. Considerando a distância e a ausência de tráfego naquele horário, imaginou que chegaria a casa que costumava ser dele, em menos de cinco minutos, esperava apenas, que não fosse tarde demais.

3



Exatos três minutos e quarenta e oito segundos mais tarde, Nestor Cruz, estava a dois quarteirões do lugar em que viveu doze anos de sua vida de quarentão. Olhando pela janela não via qualquer sinal de fumaça, o que deixou-o um pouco menos nervoso. Pensou naquele espaço de vinte e seis segundos que o separaram da porta da casa, que talvez os bombeiros houvessem conseguido controlar o fogo, ou ainda que o incêndio fosse em algum vizinho, ou até que fosse uma pequena queimadura, que houvesse deixado a filha desnorteada.
Contudo, quando chegou ao numero 407 da Rua dos Andradas, viu a maior tocha que já havia visto. Todos os pesadelos que tivera, todo o medo que sempre sentira do fogo, todos os pedidos desesperados para que quando fosse a sua hora, não houvesse fogo no meio disso, afloraram enquanto ele arrombava a porta e abria caminho.
Lembrou-se da queimadura na mão que sempre carregaria consigo, por uma brincadeira estúpida do irmão, que ele nunca conseguira de todo perdoar. O garoto durante um churrasco com os amigos, usou o irmão mais novo, nesse caso Nestor como mascote, e deu-lhe álcool para acrescentar ao fogo, jurando para o irmão que era água. Quando a labareda atingiu sua mão,e tentou fugir pelo seu corpo o irmão a tapou com seu moletom. Contudo, a cicatriz permanecera para sempre no corpo e na mente de Nestor Cruz, que agora via a sua frente a escada da casa, que dava para o segundo andar, onde ficava o quarto dos seus filhos totalmente coberta pelo fogo.
Correu desbaratinadamente, entre as chamas, tapando apenas o rosto, com a mão queimada, que nos dias mais frios, ainda teimava em doer. Alcançou a porta do quarto dos filhos, e viu a chama consumindo todos os móveis. E no meio de tudo, a única visão que ele nunca esperara ver.
Sua filha de oito anos, tomada pelo fogo segurava a mão de seu irmãozinho Matheus. Os dois ainda queimavam quando caminharam na direção do pai, que paralisado pelo horror e pelo medo aceitou sua aproximação. Quando eles quase o tocavam, e ele finalmente, conseguiu libertar-se e tratou de correr,a porta atrás dele havia se fechado, e as mãos quentes dos seus filhos já o envolviam. Entre gritos de horror e de dor, os três queimaram por mais algum tempo, e a luz da fogueira da casa 407 da Rua dos Andradas, finalmente se apagou.

Obituário, Jornal A Folha.

Nestor Cruz, empreiteiro de 42 anos, faleceu na noite desta terça feira, 17 de junho. A causa da morte, segundo o médico legista, foi uma sobredose na ingestão de remédio receitados, seguida por parada cardíaca. O legista informou a família, que Nestor morreu durante o sono, e que não sofreu nenhum tipo de dor.

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