A aurora anunciava que algo haveria de acontecer, um sinistro entardecer celeste, era o prenuncio do que estava por vir.
Quando Afonso, embarcou naquele ônibus, numa fria manha de outubro, não sabia que seu destino trágico já estava traçado. Eram exatamente sete horas da manhã, não havia sol, o céu estava nublado, os olhos dos passageiros se voltaram a ele com desinteresse, para em seguida repousarem novamente no nada verde da paisagem.
Abriu o Laptop, leu mais uma vez as reportagens que havia conseguido sobre Aureliano Márquez, o pintor. Das poucas obras que publicara, nenhuma lhe chamou real atenção, contudo, não era nenhum grande apreciador da arte da pintura.
As palavras, eram repetitivas quando alguém referia- se a Márquez, algo do tipo: “ Um Gênio de qualidade indubitável, introvertido, e excêntrico como quase todos os grandes”. Enquanto lia, essas palavras, pensava na sorte que tinha, recordava do telefonema que lhe tirara da cama, num dia que decidira não ir trabalhar. Recordava o porre da noite anterior, e a decisão de fazer tudo o possível para ser demitido do jornal em que trabalhava.
Pensava tudo, como se uma grande reviravolta lhe trouxesse de novo a vida, e devia isso a Aureliano, o pintor, e enquanto matutava, algumas coisas que lia no notebook, lhe chamaram a atenção. Alguém escreveu que o artista deveria ter feito mais de 500 obras em toda a vida, e que apenas 1% dessas obras foi apresentada ao grande publico. Sabia- se que era rico, e que fazia muitos retratos sob encomenda, com a condição de que ninguém pudesse vê-los a não ser o comprador.
Começou a escrever sobre o tema, antes mesmo de chegar a Huazu, a cidade onde vivia o excêntrico artista. Relatou todas as curiosidades que achou interessante, idade estimada, local de nascimento desconhecido, data da primeira obra publicada, semelhanças inquietantes, com pintores de outras eras.
Nesse trabalho, ficou absorto, até o instante em que o ônibus parado no seu objetivo final, fez com que aterrissasse novamente no mundo real. Ao descer tomou um táxi, e encaminhou- se para a propriedade do Sr. Aureliano Márquez.
Na chegada à casa a primeira impressão que teve, foi de espanto, os portais góticos na entrada da casa, eram magníficos, assim como os anjos, negros e louros, que adornavam as paredes no corredor principal. Os quartos eram bem distribuídos pelo corredor, todos em tons claros, assim como os lençóis, e os outros utensílios que ali estavam.
Eram cerca de 3 da tarde, quando Afonso chegou, aguardava ansiosamente o encontro com o entrevistado, para iniciar seu trabalho, todavia suas pretensões acabaram por tornar-se decepção no momento em que foi avisado, que só seria atendido pelo pintor no dia seguinte.
Ao caminhar pela parte social da casa, pôde perceber que não havia espelhos na casa, ao ser questionada uma empregada lhe disse que o patrão não gostava muito do próprio rosto nos últimos tempos, e mandara guardar todos os espelhos no porão.
Foi uma noite confusa, a primeira do jovem repórter, na imensa casa, muito embora pudesse escutar o silêncio absoluto, algo lhe incomodava no momento em que fechava os olhos, parecia desperto, e ao mesmo tempo adormecido, algo que se assemelhava a um ruído constante que provinha do infinito, algo muito mais inquietante que o uivo de um lobo, ou o mau agouro de uma coruja.
Na manhã seguinte, a Governanta da casa, bateu-lhe a porta, avisando que o seu patrão, aguardava-o para o café da manhã. Teve um pouco de trabalho, com seus volumosos cabelos, já que não haviam espelhos na casa, utilizou- se da pouquíssima luz que entrava pelas janelas para refletir- se na janela. Terminou sua higiene pessoal, e desceu velozmente ao encontro que tanto ansiava.
O café foi talvez a melhor refeição que já tivera, havia de um tudo na mesa, toda espécie de iguarias possíveis,Afonso sentiu- se uma criança em um loja de brinquedos, e mesmo sabendo que se arrependeria em breve de comer tanto, algo lhe impedia de parar. O pintor, lhe observava com estranha afeição, o que incomodava um pouco o jovem repórter.
Assim que a refeição deu- se por encerrada, iniciou uma observação dos traços cansados do pintor, o desenho do seu rosto, e a forma como seus cabelos lisos e brancos caiam sobre os ombros. Se espantou, com a forma como se encontrava envelhecido aquele, que pelos traços já havia sido um belo homem.
Conversaram sobre muitas coisas, política, misticismo, literatura, sobre a paixão confessa do Sr. Márquez, por Oscar Wilde. Até astrofísica foi comentada, muito embora, nenhum dos dois dominasse o assunto. Foi com certeza a conversa mais interessante que o excitado repórter já tivera em toda sua vida.
Tudo foi anotado pelo repórter, pelo furor da juventude, que estava impregnada nele.
Foi uma tarde muito agradável, todavia, o repórter sempre fugia das perguntas mais complexas, com respostas evasivas. Contornava as pretensões de Afonso, com respostas que não permitiam tréplica e, contudo, não diziam nada. O Jovem, pensou diversas vezes, que levaria uns duzentos anos, para aprender a ser tão eficaz em respostas vazias.
A Noite se avizinhava, quando Aureliano Márquez, decidiu retirar- se, o brilho em seu olhar explicava que pretendia pintar, o que de uma forma incomum alegrou ao repórter. Nem imaginava, que o artista lhe proporia o que estava por vir, a incredulidade ficou estampada em seus olhos, o grande pintor, pediu para pintar-lhe, lhe disse que era muito provavelmente seu ultimo trabalho e desejava, com as forças que lhe restavam pintar um ultimo rosto, caso o jovem lhe permitisse obviamente. A resposta foi um intempestivo e contundente sim, de um repórter cada vez mais hipnotizado pela aura fantástica que lhe circundava.
Dormiu realmente feliz, aquela noite, muito embora, alguns pesadelos lhe despertassem diversas vezes durante a noite. Acordou realmente cansado, levantou- se buscou a luz da janela que lhe ajudara no dia anterior, todavia, não pôde encontrar o seu reflexo, e penteou- se usando apenas o tato, o que lhe resultou muito trabalhoso, e por conseguinte gerou resultados duvidosos.Todavia, o início de outro dia na casa de tão fascinante figura lhe deixava atônito.
Sentado à mesa, pôde perceber um Aureliano rejuvenescido aquela manhã, concluiu então que voltar a pintar lhe fizera muito bem, um sorriso muito menos amarelo do que o dia anterior antecedeu o momento em que o pintor salientou que a juventude que o repórter trouxera para a casa, lhe fizera voltar a pintar.
Nos dias seguintes, poucas vezes pôde ver ao Sr. Márquez. Apenas podia ouvi-lo trabalhando, ao perguntar as empregadas, quando poderia vê-lo, sempre recebia a mesma resposta. “ Ninguém pode atrapalhar, o processo criativo do senhor Márquez.”
Nos três dias seguintes isso lhe incomodou menos, do que o fato de sentir- se fraco, e de não conseguir um espelho para pentear suas extensas madeixas, ainda mais por que não conseguia mais ver seu reflexo em qualquer das janelas, da mal iluminada casa. Contudo, no quarto dia seguido de reclusão do pintor, sentiu- se desrespeitado, e tentado a partir. Entretanto, um bilhete educadíssimo do pintor, fez com que fosse demovido de sua idéia e lhe persuadiu a ficar na casa. Afonso, entediado, e enfermo, passava o dia dormindo, esperando para poder ver Aureliano, o pintor.
Não gostava de como vinha se sentindo, as dores no corpo, eram a cada dia mais fortes, e a má vontade das empregadas em chamar-lhe um médico, lhe enchiam de furor. Todavia, sequer possuía forças para brigar com elas, reiteradas vezes, pensou que se sentia como um velho de setenta anos.
Na oitava noite de estadia, Afonso, pôde ouvir claramente o trabalho do pintor. Foram horas de ruídos intercalados, com largos instantes de silêncio, na verdade, esse ciclo ocorreu durante toda a noite, na verdade foram catorze horas ininterruptas de trabalho. Iniciou as oito da noite, e foi encerrado apenas no dia seguinte, as dez horas da manhã, curiosamente, ninguém apareceu, como de costume, aquela manhã. Afonso perguntou- se o que teria ocorrido, e levantou- se não sem dificuldades, tinha os olhos turvos, quase não podia enxergar. Chocou- se contra a cama e contra a mesa de cabeceira antes de conseguir sair do quarto.
Estava só na casa, o silêncio era total, ou ao menos era o que parecia, ouviu um ruído constante vindo de uma porta, que estava entreaberta no fim, de um dos diversos e extensos corredores da casa.
Caminhou ate lá, e não sabia se teria coragem de entrar, um sentimento instintivo de temor, havia tomado conta de todo o seu corpo, que tremia enfraquecido, pela gripe, que ele pensava haver contraído.
Desceu as escadas, que pareciam intermináveis, com muita dificuldade, havia muitas teias de aranha, pedaços quebrados de pincéis, diversas latas de tinta abertas, davam o acre aroma ao local, escuro e úmido. Quando pensava em retornar, escutou novamente o ruído que lhe invitara a entrar anteriormente, vindo de um canto ainda mais escuro, que os demais.
Abriu a porta de madeira, que lhe separava do ruído, havia uma tênue luz, iluminando o fundo da peça, onde um espelho enorme estava repousando. Com enormes dificuldades, aproximou- se, e não sem dificuldades lançou seu ultimo grito agudo.
Sua cara de espanto foi terrível, pois, o rosto que se refletia no espelho não era o seu, e sim um muito mais cansado, um rosto envelhecido e quase morto, na verdade se parecia agora com um homem de 90 anos, para ser mais exato possuía agora o rosto de Aureliano Márquez.
Olhou pra trás para não mais ver sua imagem, e em paradoxo terminou por ver-se, ou ao menos viu seu rosto, Aureliano vestia agora sua face, e carregava em mãos um quadro, com o próprio rosto pintado e um pincel banhado em vermelho sangue.
Afonso precipitou-se sobre ele, contudo, seus movimentos eram lentos, e o velho, agora jovem pintor, deu mais uma pincelada no quadro, passando o vermelho sobre a boca do homem perfeitamente retratado naquele quadro, Afonso vomitou sangue, e com mais algumas pinceladas o seu coração parou.
Os dias passaram, e a morte de Aureliano Márquez foi a notícia mais comentada, em todas as rodas intelectuais, vários repórteres tentavam desvendar os mistérios de sua vida, muito embora nenhum deles tenha tido êxito.
Na verdade, apenas um, a matéria mais lida aquele ano, foi escrito por um tal Afonso Storni, a ultima pessoa a conviver com o brilhante pintor. Suas frases, marcantes e sua forma clássica de escrita, poderiam ter-lhe valido um prêmio pulitzer.
Todavia, sua vida mudou totalmente de rumos, pois, ao voltar daquela viagem, ele se disse extremamente influenciado pelo genial trabalho de Aureliano Márquez, e que desde aquele dia, cansara de escrever e decidira, começar a pintar.
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