Pesquisar

quinta-feira, 4 de março de 2010

A NORTE DAQUI


O jovem louro lavava a louça e olhava pela janela. O dia estava chuvoso, lágrimas escorriam pelo rosto cinza da noite. Havia silêncio, mas também havia som. O mais inquietante do som, inclusive do silêncio é que quando ele some totalmente, você sabe que algo enorme aconteceu. Um piloto de caça que alcança a velocidade do som, sabe exatamente qual é a sensação. Foi o que aconteceu no exato instante em que o ultimo prato estava terminando de ser lavado.
Um grito uníssono que portava milhares de vozes, surgiu sobre a nulidade de som. Uma marcha fantasmagórica se ergueu durante os minutos subseqüentes, o jovem Lucas ficou ali parado, deixando a água cair sobre a gordura restante no último prato. Ouvindo o som do fim, foi assim que ele pensou naquilo. “ O Som do fim”, seria uma boa definição na verdade. Foi o fim, pros que foram arrastados pela trupe, provavelmente tenha sido o fim inclusive, para os que estavam na multidão. Não era religioso, mas acreditou, mesmo que de uma forma surreal, estar no meio do apocalipse. Ele só podia imaginar a marcha, não vê-la. Seu apartamento minúsculo, estava de costas pra o centro da rua.
Entre os olhos do jovem e a passagem da marcha do som do fim. Havia quilos de cimento, peças de roupas penduradas na corda, e ainda havia a imobilidade a que ele estava submetido. Quando o som ficou alto demais, ele simplesmente apagou.



Quando acordou estava deitado numa poça rosa, que pelo que ele presumia, era uma mistura de saliva, da água que seguia correndo da torneira, e do sangue que provinha do enorme corte que a queda causara. O silencio havia sido restabelecido. Ele sentiu um certo alívio com isso. Ainda que fosse o silêncio, o som estava ali. Estava tudo escuro, então levantou-se com cuidado. Deu dois passos, tropeçou em alguma coisa, deu mais um passo e alcançou o interruptor. Virou a chave, nem sinal de luz. De alguma forma aquilo não o surpreendeu, ele já esperava por algo do tipo.
Tratou então de lembrar, onde havia colocado as velas. Como haveria de ser, elas estavam o mais longe possível de onde ele estava. Digo, possível por que numa casa, que não passava de uma cozinha, uma sala e um banheiro, nada poderia ser distante o bastante.
Ele foi até lá, enquanto batia em todas as coisas, que poderiam machucá-lo no caminho. Ele reconheceu a cômoda, por que aquela ponta já batera no mesmo ponto de sua cocha antes. Reconheceu o pé da mesa, por que já a chutara antes, o resto ele não soube definir, mas não importa. Ele ao menos chegou na gaveta onde a vela estava. Tirou-a de lá, e quando o fez, percebeu que não havia pego o isqueiro quando saíra da cozinha.
- Olha a lei de Murphy, aí gente- disse, enquanto refazia o caminho até a cozinha, batendo nas mesmas coisas em que acabara de bater.
Quando alcançou o isqueiro, a energia foi restabelecida. Monofásica, mais ainda assim restabelecida. Pôde ver que tropeçara antes de alcançar o interruptor, em um saco de arroz, que deveria estar dentro do armário, mas que obviamente não estava. E que depois havia batido, na mesa e na cômoda como pensara, bem como na televisão que caíra ao solo, e milagrosamente não tivera o tubo quebrado, e ainda no ventilador que também havia tombado. Quando abriu a porta e inspirou pela primeira vez, o ar da rua, pós o incidente, por assim dizer, soube que algo estava diferente. Havia algo sinistramente diferente.

O apartamento onde morava, tinha cinco andares. E não tinha elevador. Ficava na frente de uma universidade e era o point da cidade. A cidade em que ele estava não precisa ser nomeada, não importa realmente, se você for daquelas pessoas, que precisam dar um nome a tudo, chame-a, cidade A. Ele saiu correndo em direção ao apartamento ao lado. Ele morava no segundo andar, se ninguém abrisse a porta, ele simplesmente se mandaria e sairia dali, o mais rápido possível. Como se correr fosse o suficiente, pra se livrar daquela sensação de que o mundo acabara e só ele sobreviveria eternamente sozinho no meio do nada.
?!Se esse não for o mais perto do inferno que podemos chegar, eu nem sei mais, onde o inferno fica?!- ele riu com a idéia que havia tido, um riso nervoso, igual ao de uma pessoa que acaba caindo na gargalhada num enterro. No meio do seu riso, em uma semitom de gargalhada uma voz fazia-se ouvir. O Inferno é a norte daqui. Ele podia ouvi-la. Mas preferiu rir mais alto, e fingir que fora só impressão.
Quando alcançou a porta do vizinho e a esmurrou, como um pai esmurraria alguém que quisesse fazer mal a sua garotinha, ela simplesmente se escancarou frente aos seus olhos. Ele gritou, chamou por alguém, ninguém respondeu. O apartamento em que ele chegara dava de frente para a rua. Ele caminhou lentamente em direção a sacada, quase como quem não quer caminhar na direção dela. Quando saiu a rua enxergou, o que no fundo sabia que ia enxergar. Tudo ainda estava lá. As luzes estavam acesas, os carros estacionados, as sinaleiras avisando quem podia vir e quem podia ir. E era exatamente nesse ponto, que residia o problema, o xis da questão, foi assim que Lucas pensou no que estava acontecendo, quase como um professor pensa em um teorema matemático. Não havia ninguém indo e vindo nas sinaleiras, assim como não havia ninguém, tomando cerveja, o som alto dos carros virara estática. Simplesmente não havia ninguém.

Quando Lucas desceu as escadas, viu que todas as portas no primeiro andar, estavam escancaradas, convidativas como aquela do seu vizinho de andar, ele não quis vasculhar se havia alguém ali, seu intimo já lhe dissera que não. Quando chegou a grande porta branca de madeira, seu corpo inteiro tremia, e sua mão suava enquanto tentava girar a maçaneta. Depois de sua mão escorregar duas vezes, ele finalmente conseguiu abrir a porta. Puxou-a porta na direção do seu corpo, e esquivou-se rapidamente, no mesmo movimento impulsionando-se e lançando-se em direção a rua. E a toda ausência de pessoas que ela emprestava naquele momento. Pegou a rua de sua casa e saiu correndo sem direção como se buscasse alguém que ele sabia que não estava ali. Depois de mais ou menos dez quadras, parou de correr. Seu corpo doía, pernas, músculos, estômago. Sentiu-se enjoado, foi até a esquina, como se não quisesse que ninguém o visse vomitando, e deixou que as impurezas saíssem de sua boca para o fundo da lata de lixo. Antes de terminar pode notar que algo estava acontecendo. A lata de lixo, o avisou sobre isso, começou a tremer levemente, como se o Godzilla, estivesse vindo lutando contra um grupo de ferozes velocirraptors. Inicialmente ele não teve idéia, por que a imagem de um monstro e de um bando de dinossauros havia se formado em sua cabeça, mas era exatamente o que ele achava que estava acontecendo. Algum monstro deveria ter comido todo mundo. E agora vinha pegá-lo. Correu até ao meio da rua. E se preparou pra correr o mais rápido possível na direção oposta de onde a vibração vinha, quando voltou-se para ver se o que estava vindo estava muito próximo, sentiu-se imobilizado. Seus olhos estavam abertos, sua mente acordada, mas seu corpo simplesmente não respondia. Ele tentou virar-se, tentou correr do ponto negro que vinha velozmente em sua direção. Mas não conseguia. Fechou os olhos, e contou até dez, tentou gritar para ver se aquilo era um pesadelo do qual ele poderia acordar. Quando abriu-os o ponto negro estava ainda mais próximo, e não era um ponto negro apenas, eram milhares de pontos negros, todos vindo na sua direção. Seus olhos ficaram lá parados, sem piscar, seu corpo não emitiu qualquer reação, ele ficou lá esperando que a multidão o pisoteasse. Pensou que provavelmente seria o melhor que poderiam fazer por ele.
Foi então que a multidão chegou tão perto, que ele pôde distinguir um rosto familiar. Um rosto que ele conhecia talvez, como nenhum outro. Era o rosto de sua mãe, da mãe que havia abandonado o pai dele, a mãe alcoólatra que tinha uns vinte namorados por mês, a mãe pervertida que deixava que os animais que ela chamava de amor, batessem nele e no irmão. A mãe que ele matara a pancadas, três anos antes daquela noite. O animal da vez, um brutamontes bêbado, que nem conseguia se vestir sozinho levou a culpa, tinha histórico violento e veio com uma história absurda de que o filho de treze anos e que estava em choque a matara. Lucas e o irmão foram aceitos pela tia, que era uma boa mulher, e que tinha algum dinheiro. Ela ainda cuidava do irmão, Natan. E cuidava dele, pagando-lhe os estudos. E ele era extremamente grato por isso.
Mas naquele momento não era a tia que importava. Era a mãe morta, vindo na sua direção com os olhos vidrados e maléficos.
- É isso não é? Uma tropa de esqueletos. É a porra de uma tropa de mortos, vindo me buscar.
Quando a multidão estava a menos de trinta segundos dele. Iniciou um canto altíssimo e forte. Durante os primeiros segundos ele não entendeu nada. Depois começou a decifrar algumas palavras, até que seus olhos foram tomados primeiramente pela luz da compreensão, para em seguida, serem tomados pelo pavor. Quando a multidão chegou, seu corpo se soltou, ele virou-se e foi caminhando junto dela, exatamente ao lado da mãe morta, seus olhos estavam vidrados também. A multidão foi para o norte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário