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quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Nicolás Gonçalves O segundo meu...

Pois bem...assassino mais um.
espero que gostem.

A INDIZÍVEL HISTÓRIA DE XAVIER PROGIN

Uma mesa retangular, uma cadeira indo ao chão, um copo pela metade com o whisky mais barato que o dinheiro pode comprar repousando encima da mesma mesa, uma toalha desbotada, mais cansada do que gostaria de estar, de uma cor bege que muito se assemelha a solidão total. Uma janela de vidros longos, retocados pela nobreza do marco imperial que os sustenta ,que não enxerga a rua de tão suja e abandonada.

A barba mal feita, cheia de falhas notórias, mais comprida de um lado do que do outro, locais em que a barba simplesmente inexistia. No meio de tudo o olhar cansado. Cansado pelo tempo, inimigo inexorável. Covarde inimigo que nos envelhece só pra nos fazer lembrar. Lembrar de lembrar a juventude que há muito abandonara aquele invólucro corpóreo, lembrar de lembrar o sorriso fácil e sincero que agora é de um amarelo cor de fim. Lembrar de lembrar do amigo de infância com quem aprendeu a dançar tango. Lembrar de esquecer de tantas coisas. As roupas mofadas pela falta de água, pela falta de cuidado, eram só um reflexo de uma alma apodrecida, pelo amor que há muito abandonara as veias daquele homem de tanto tempo, mesmo sem tanta idade. Abandonara, por que no fim sempre há abandono e fora repousar em alguma aura mais jovem.

Um livro do Galeano aberto em alguma página, transborda um híbrido de suor e lágrimas que dá uma aura ainda mais pesada ao ambiente, enquanto serve também de alimento para as traças que se acumulam no canto mais escuro do quarto que guarda aquele cavalheiro das sombras. Peter O’toole está inscrito dentro da tela da tv, repetindo toda vez as mesmas falas, os mesmos crimes, os mesmos fins. A morte está sentada ao lado do nosso herói e nem sequer ela o agüenta mais. Repousa sua frustração nos ombros agora ainda mais pesados do jovem velho ali em silêncio. Pensa consigo mesma, Antigamente ele tinha coisas úteis a dizer, agora só fica em silêncio observando o nada dentro de uma garrafa que sempre está no mesmo ponto.

Havia muito que ele ali estava. Milênios talvez. As estações voaram na solitária presença do nada, duas bailarinas semi-nuas insinuaram- se a ele todo o verão, dançavam ao redor de uma fogueira improvável, e imorredoura. Todavia, apenas fizeram com que ele as notasse com um misto de pena e excitação por um período, que no fim não foi superior a um segundo.

As bailarinas outonais por sua vez, desistiram antes do fim da estação. Não suportaram o olhar há muito morto que aquele vivo insistia em carregar. Calaram- se, por fim, pois seu silêncio de antes, era muito barulhento, recolocaram seus colans,e partiram em uma valsa mista de adeus, rancor e desespero.

A mulher que ele amou, há muito partira, muito embora seus pés ainda beijassem sapatos baixos todas as manhãs. E que seus vestidos a noite, ainda estivessem mornos. Aos olhos dele, ela já havia morrido, e a morte é como o tempo, uma inimiga que não se pode vencer. Não muito distante daquela janela, em que ele não se via, os lábios dela beijavam outros lábios, e os olhos dela mentiam pra outros olhos. Como se sempre, não fosse o olhar do herói desta história que ela estivesse buscando.

Ele relembrava a mulher que amara, e aquela que agora despia-se para um outro, como duas pessoas distintas, dois seres humanos coexistindo em um mesmo corpo, sem jamais serem o mesmo ser.

A máquina de escrever não parava de reclamar dos mal tratos que seu dono lhe prestava, sempre em tom audível e não dimensionável. Qualquer fantasma que por engano cruzasse aquele caminho, poderia ouvi-la dizendo: - Quem eu tenho que matar, para que esse proxeneta volte a me tocar?.

Reclamava e reclamava, dizia portar tantas idéias. Mas ele só podia pensar na mulher.

A literatura inovadora que lhe corria nas veias, estancara junto com seu sangue e o cheiro putrefato daquele inseto gigante que circundava sua imaginação.

- o que você quer?- pronunciou dirigindo- se a máquina, após meses de profundo silêncio.

-Prazer- retrucou a mesma, com um misto de tesão e arrependimento.

-Tudo bem- prosseguiu ele- mas será a nossa última vez.

- não me resta muito tempo mesmo- argüiu a máquina de escrever, já aceitando seu destino de cair em desuso.

Deixou com que as calças lhe caíssem até o joelho e caminhou em direção a sua companheira para aquela noite, sentou- se em um banco, que jazia adormecido e mudo ali já há algum tempo. E colocou seus dedos, sobre as teclas que gemiam em um tac tac intenso. Não soube definir por quantas horas, ou ainda dias permaneceu ali, embevecido. Soube- se com dor nos dedos, mas a colocou como um mero entrave psicológico.

Seus olhos de um outrora verde flamejante, pareciam duas amêndoas sem qualquer tipo de expressão definível em seu cerne. Pareciam dois corpos estranhos, assim como a barba que já começara a ter nós em suas pontas. As folhas acumulavam- se despudoradamente nuas sobre a mesa de mogno. Os orgasmos múltiplos referentes ao receptáculo em que ele colocava delicadamente as mãos sucediam- se tal qual as ondas quebrando na costa em um dia de vento intenso.

Xavier Progin, havia sido um homem e tanto, todos diziam que era o rapaz mais inteligente que havia tido por nascedouro aquele local esquecido num canto do mundo, diziam haver um gênio ali. Suportavam até seus atos mais loucos, por pensarem que no fim das contas, ele estivesse acima da lei, por ser mais inteligente do que as pessoas que a haviam concebido.

Cresceu sem limites. Não haviam rédeas em sua vida. Seus vinte anos inicias, o intróito de sua aterradora jornada, foram regados por doses de vinhos, whisky’s, cervejas, poemas e mulheres diversas.

Milhares de corpos sucederam o prenuncio de que sua jornada, no fim, se resumiria a uma única mulher, que por ser apenas uma, vestindo todas as que valeram a pena amar, levaram-no ao ocaso.

Era uma noite de fim de verão, fim de adolescência pra ser mais preciso, um lugar da nossa história, que amamos com fervor, e que nos permite o começo da maturidade e alguns deslizes da infantilidade. E ele recordava de todos os segundos daquele dia, a prova de química na qual ele decidira previamente ser reprovado, sabendo que os professores daria um jeito de aprová-lo. Da camisa azul de linho, da calça desbotada e do sapato velho. Mas principalmente lembrava- se dela. Com seus olhos cor de vida. Cor de sorte.Com um sorriso só dela, triste e calmo. Febril e alegre.

Lembrava daquele beijo, daquele que não se atreveu a dar. Da vez primeira que tomou a mão dela como sua, de todas as vezes que não o fez. Recordava e não queria recordar. Fechou os olhos, realidade e ficção se confundiam em uma zona mista entre o mundo que conhecemos, e o mundo particular que existe dentro de nós e que nunca deveria ser revelado.

Sentiu água nos pulmões, abriu os olhos, viu que se afogava. Pensou nas folhas que escrevera, tratou de impedir que se molhassem e se viu, seco, sem nada que se assemelhasse a um naufrágio nas proximidades. Entendeu que enlouquecia, mas seus dedos continuavam deslizando sobre as teclas quase saciadas. E a história falava de água, de coisas que ele nem lembrava ter escrito.

As páginas inundadas estavam secas. Os ecos de uma história que jamais lhe fora contada, ressoavam em sua cabeça, que estava prestes a explodir.Ela podia ouvir a voz do capitão John White chamando por ele. A água lhe enchia os pulmões e seu nome continuava sendo gritado vorazmente, foi aí, entre um bufido de bala, e uma tecla insistentemente batida que Xavier despertou- se em um 1590, com uma rajada forte de água em seu rosto.

Os barcos estavam ancorados, algo instintivo permitiu que Progin ajudasse com a descida do navio em direção a terra firme. O capitão, só falava da filha e principalmente do neto que o esperavam em terra. Falava da saudade, dos três anos de distancia, dos infortúnios que o impediram de voltar antes.

O sol nascia, uma criança nua corria pela praia, circundava os horrorizados marujos daquela embarcação. Falava uma linguagem que não se podia entender, possuía um rosto sem rosto, uma face sem olhos, uma boca enorme e um espaço no meio da cara, com dois buracos que pareciam servir como narinas.

Um tiro proveniente de um dos marujos, assassinou o bebê horrendo que não parecia fruto desse mundo. Novamente nosso herói viu- se sentado dentro da casa que o guardara vigorosamente durante as ultimas estações. Um ruído, outro, alguém bate a porta, ele ao contrário de todas as outras vezes, decide abri-la. Algo lhe dizia para fazê-lo.

A arma, a mesma que matara aquele ser, tantos anos antes, em uma história que não era a dele, apareceu em suas mãos, assim como o sangue daquele fruto mal parido da civilização. Sentiu um golpe forte na cabeça, alguém lhe agredira, sentia- se tonto, porém não enfraquecido a ponto de pensar em morte.

Viu um rosto desesperado, um olhar inqualificável, indecifrável, até certo ponto. Uma face de mulher que interrompeu-lhe os sentidos. Era ela, a mulher que sempre fora sua, mesmo antes e depois de sê-lo. Ela o atacou, um novo disparo atravessou o ar. Os joelhos dela escondidos sob o âmago do vestido longo beijaram o solo, e banhada em sangue ela desfaleceu, tal qual uma rosa que se fecha no instante em que expira.

John White, o golpeou uma e outra vez. Afinal matara o seu neto e sua filha, os únicos dois motivos reais de sua existência. A realidade abandonara aquela ilha dos confins da América, e seres reais e imaginários eram um só em um mundo que mesclava horror e putrefação.

Despertou- se pela ultima vez na realidade que conhecera a vida toda. E viu a mesma mulher que ele sempre amou, a mesma que ele assassinara na praia no longínquo 1590, estirada sobre o solo. Morta como a folha outonal que viaja na brisa do vento. Viu a mesma arma em suas mãos.

Ouviu uma gargalhada. Elisa, a máquina de escrever, ria freneticamente. Do desfecho do conto, do fim da história. Dois disparos, cessaram os ruídos. O primeiro assassinou a inverossímil máquina de escrever. E o segundo vasculhou-lhe o cérebro. Como a resposta que ele tanto aguardara, a todas as perguntas que ele jamais soube responder.

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